A forte relação de afeto estabelecida entre pais e filhos não pode ser desfeita, uma vez que a situação é irreversível em razão da convivência contínua e duradoura entre as partes, formando, assim, laços de amor. Sob essa ótica, a juíza Coraci Pereira da Silva, da Vara de Família e Sucessões de Rio Verde, julgou improcedente uma ação negatória de paternidade movida por um homem que após descobrir, por meio de um exame de DNA, que não era o pai biológico de uma menina que criou e registrou como sua filha legítima, solicitou na Justiça a declaração negativa da paternidade biológica e a retificação do registro de nascimento da criança. Contudo, a magistrada declarou o vínculo de afetividade existente entre ambos, ao observar que a paternidade não pode se resumir a um simples dado biológico, além de determinar que a certidão de nascimento da garota, hoje com 10 anos, permaneça inalterado.
Para a juíza, não existe dúvida de que a relação de parentesco não se apóia apenas na consanguinidade, mas sobretudo na relação de socioafetividade, que pode ser resultante da interpretação da expressão “outra origem”, conforme descreve o artigo 1.593 do Código Civil. “Essa expressão, entre outras hipóteses, significa o parentesco derivado do carinho, do respeito, da afeição e da dedicação, mesmo que a relação existente entre seus sujeitos não seja de cunho biológico. Portanto, afere-se do dispositivo legal mencionado que o parentesco biológico não é o único que promove efeitos jurídicos e sociais. Pelo contrário, em determinados casos, a verdade biológica, ainda que provada pelo quase infalível exame de DNA, cede espaço para a verdade socioafetiva, construída com base nas situações de afeto mútuo entre pais e filhos”, pontuou.
Outro ponto destacado por Coraci é o dano psicológico causado ao desenvolvimento da criança com um rompimento tão brusco. “Se o pai, sendo adulto, experiente e com estrutura emocional e psicológica já consolidada, afirmou que ter ficado 'sem chão' diante do resultado do DNA, imagine o que isto significa para a criança que em pleno desenvolvimento psicológico que cresceu tendo um pai de fato e de direito, de quem vêm recebendo carinho, amor, atenção e tudo mais que necessita para um crescimento saudável e então bruscamente, por um critério científico, descobre que não tem pai, ou o que é pior, é orfã de pai vivo. A criança não pediu, nem contribuiu para que a situação tomasse este rumo. Portanto, é injusto que ela pague pelo comportamento de adultos”, frisou.
Ao observar, inclusive, as conversas trocadas entre o homem e a garota pelo aplicativo whatsapp, que revelam expressões de amor e carinho recíprocas entre ambos, a magistrada lembrou que os laços de afetividade se constroem lentamente e não se rompem de forma brusca como se nunca tivesse sido formado. “Gosto e preciso de ti, quero logo explicar, não gosto porque preciso. Preciso sim, por gostar”, ressaltou, parafraseando o poeta e ator Mário Lago.
Fazendo uma referência a Constituição Federal, a magistrada verificou que embora não haja na CF apontamento explícito acerca da paternidade socioafetiva baseada na posse do estado de filho, o capítulo VII traduz a ampla preocupação com a valorização do afeto como objeto fundamental dos núcleos de convivência familiar. “Verifica-se que além de vínculos biológicos existem os afetivos, que exemplificam que pai não é necessariamente aquele que 'põe no mundo', aquele que gera, transcendendo o conceito de que o pai é aquele que cria, que ama, que se preocupa com o bem-estar, que sempre pode encontrar-se presente. A paternidade socioafetiva fundamenta-se na relação de afeto, amor, carinho e dedicação do pai para com o seu filho, sem se importar se existe vínculo biológico entre eles, única coisa que os mantém é a essência da vida que é amar e ser amado”, ponderou.
Na visão da juíza (foto), após a solidificação dos laços afetivos com a criança é irrelevante se o pai quer ou não manter esse vínculo. Ao avaliar de forma mais sensível e profunda o caso, Coraci percebeu que o pai demonstrou preocupação real com a filha ao informar que gostaria que um bom psicólogo a tratasse, restando evidente a contradição em sua fala quando deixou transparecer que não queria ligação com a menina. “Psicólogo nenhum poderá ser capaz de levar a criança a aceitar a ideia de ser destituída do pai de forma tão drástica, pois somente o pai pode proteger a filha, função esta que jamais poderá ser delegada”, considerou.
Por fim, a magistrada analisou a obrigação do pai de prestar alimentos a criança tomando como base o Código Civil (artigo 1.596) e a comprovação da existência da posse do estado de filha. “É notoriamente sabido, o dever de criar é da essência do poder familiar e função precípua dos pais. Expresso, inicialmente no ato de dar existência ao filho, concebendo-o, complementa-se com a consequente criação da prole, que implica na obrigação de garantir o bem-estar físico do filho, no qual se inclui o sustento alimentar, o cuidado com a saúde e o que mais necessário for à sobrevivência. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”, concluiu. (Texto: Myrelle Motta – Centro de Comunicação Social do TJGO)
Fonte: www.tjgo.jus.br