Furtos simples e receptação de mercadoria roubada, por exemplo, são delitos que preveem reclusão de até quatro anos. E para penas, justamente, de até essa máxima, o Código Penal dispõe que o cumprimento de sentença deve ser em regime aberto. Em caso de réu primário, o mesmo dispositivo legal versa que é possível substituir a privação de liberdade por restrição de direito. Todos esses requisitos são amplamente analisados durante as audiências de custódia, que, conforme a lei preconiza, restringe as prisões provisórias a delitos de maior periculosidade.
Segundo o juiz auxiliar da Presidência do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO) Sebastião de Assis Neto, sem a oitiva prévia do preso em flagrante, a ordem era inversa. “Muitas vezes, o suspeito era detido em flagrante, ficava preso preventivamente e aguardava o julgamento recluso para, só depois, ser condenado a um regime aberto, o que representava uma contradição.”
Iniciadas em Goiânia em 10 de agosto do ano passado, as audiências de custódia seguem orientação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em iniciativa encampada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Ricardo Lewandowski. A intenção é seguir as definições de tratados internacionais assinados pelo Brasil, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, que já é utilizada em muitos países.
Para início das atividades na capital goiana, foi feito acordo com Ministério Público do Estado de Goiás (MPGO), Defensoria Pública e governo do Estado. Até 11 de fevereiro deste ano, 1.349 presos foram levados à presença do juiz em até 24 horas, para decidir pela manutenção da prisão ou colocação em liberdade.
Com 17 anos de atuação em execução penal, a juíza Telma Aparecida Alves (foto abaixo) acredita que o encarceramento não é a solução principal para os problemas de segurança pública, uma vez que o sistema penitenciário de Goiás carece de estrutura básica e espaço físico.
Na opinião da magistrada, a prisão cautelar é uma exceção e não pode servir de regra para todos os casos. “O preso tem direito a responder em liberdade, já que, em muitos casos, a pena para o crime que ele cometeu não é a prisão em regime fechado, mas regime aberto ou prestação de serviços comunitários ou, mesmo, conseguir a absolvição. Cabe ao juiz da audiência de custódia analisar o caso individualmente e detectar a necessidade da prisão – a periculosidade da conduta e os antecedentes – porque, uma vez inserido no sistema prisional precário, ele é humilhado, ameaçado, assediado e sua reinserção social se dificulta”.
Em sua carreira, Telma Aparecida conta que viu casos de pessoas que roubaram um sabonete ou comida no supermercado e, antes da audiência de custódia, acabavam ficando na Casa de Prisão Provisória durante todo o trâmite do processo. “A audiência de custódia humaniza a justiça. É preciso considerar o contexto do ato, não apenas o delito”, relata.
Sem investimento por parte do Executivo nas penitenciárias – em segurança e higiene e estrutura física, por exemplo –, a chegada de um novo réu ao cárcere pode significar risco de vida, na análise de Telma e Sebastião. “Infelizmente, são comuns casos de aliciamento, intimidação e ameaças de novos presos pelos já condenados”, conta a juíza.
Behaviorismo e Skinner
Estímulos, positivos ou negativos, reforçam a conduta do homem, conforme síntese da teoria behaviorista, levantada por Sebastião de Assis Neto (foto à esquerda). Em sua concepção, “o transgressor não age na certeza da impunidade, mas na ausência do punidor”, em referência à necessidade conjunta de ostensão policial, a fim de reprimir crimes, e, posteriormente, da Justiça, para, se procurada, julgar a conduta.
“O próprio Código Penal entende que a reinserção é a maneira mais eficiente de garantir a paz social, uma vez que o legislador estipulou três regimes diferentes de reclusão: fechado, para penas superiores a oito anos; semiaberto, para entre quatro e oito anos, e aberto, abaixo de quatro anos”.
Telma Aparecida defende a criação de oportunidades de reinserção social para combater o crime. “Em toda minha carreira como magistrada, não vi casos de condenados que, após serem libertados e inseridos no mercado de trabalho, voltassem a reincidir no crime”.
Segundo entendimento da juíza, o que difere a maioria das pessoas, inocentes e criminosos, são as oportunidades, uma vez que o meio interfere no comportamento do indivíduo. “Imagine uma mãe que teve três filhos e não tinha como cuidar deles o dia todo, por causa do trabalho. As crianças não tinham acesso à escola integral e acabavam passando mais tempo na rua, sem supervisão. No futuro, é mais fácil que uma pessoa assim, que não teve oportunidade de futuro, tenha condutas erradas. Ninguém, quando é criança, pensa em ser traficante ou assaltante. As pessoas têm sonhos, mas os deixam de lado pelo contexto”.
Para a juíza, falta presença do Estado ao investir em educação escolar de qualidade e em saúde para garantir segurança pública. “A cultura do encarceramento como solução para a criminalidade precisa mudar”.
Números
A população carcerária do País é a quarta maior do mundo, com quase 700 mil presidiários. Do total, estima-se que 40% seja composto por presos provisórios, foco, justamente, das audiências de custódia. “Não é viável manter presos que não representam perigo iminente à sociedade, por tempo indefinido, ocupando a vaga daqueles que, realmente, tenham periculosidade”, destacou o ministro Ricardo Lewandowski na ocasião da implantação da iniciativa em Goiânia.
Entre 10 de agosto do ano passado e 11 de fevereiro deste ano, foram realizadas 1.766 audiências de custódia em Goiânia. Do total, foram expedidos 737 mandados de prisão preventiva, 462 para imposição de uso de tornozeleira eletrônica, 448 decretos de liberdade provisória, 63 relaxamentos de prisão e 2 declinações de competência.
A maior parte dos crimes é de natureza patrimonial (862), seguido por delitos relacionados a drogas (233), porte ilegal de arma de fogo (104), Lei Maria da Penha (73) e crimes de trânsito (54).
De todos os encaminhamentos de 2015, apenas 37 pessoas voltaram a ser autuadas em flagrante após benefício de medidas cautelares, o que representa 2,74% do total.
Todos os libertados provisoriamente são encaminhados à Central de Alternativas a Prisão (CAP), unidade da Secretaria Estadual de Segurança Pública e Administração Penitenciária. No local, há 25 profissionais, entre assistentes sociais, psicólogos e advogados, para fazer atendimento psicossocial e encaminhamento a cursos profissionalizantes.
O temor da sociedade, de que são soltos presos perigosos, é equivocado. “O resultado é exatamente o contrário: dessa forma, é possível ter um maior controle e, assim, realizar um combate à criminalidade”, destacou Sebastião de Assis. (Texto: Lilian Cury - Centro de Comunicação Social do TJGO)
Fonte: TJGO