À luz da Lei 8.009/90 – que versa sobre o bem de família –, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) afastou a possibilidade de penhora de parte de um imóvel avaliado em R$ 1,2 milhão. A decisão foi tomada pela 4ª Turma do STJ, que considerou a impenhorabilidade da propriedade residencial, a partir do que prevê a norma. De acordo com o texto, o bem de família não pode ser usado para quitar “qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam”.
Para o ministro Luís Felipe Salomão, relator do Recurso Especial (1351571/SP) que deu origem ao debate no STJ, a penhora de uma fração da propriedade pode ser considerada quando o imóvel do devedor é de alto valor. Sendo assim, o credor receberia aquilo que lhe cabe, e o proprietário continuaria tendo direito ao restante da posse, vivendo de forma digna. Entretanto, os demais ministros não acompanharam a interpretação de Salomão e defenderam a impenhorabilidade de qualquer quota do bem de família.
De acordo com o advogado e diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), José Fernando Simão, “o bem de família é garantia de um mínimo essencial. A Lei 8.009/90 veio para assegurar o mínimo existencial representado pela moradia, que, de resto, é um direito constitucional. A lei não limitou o valor do bem. Portanto, um imóvel que vale R$ 10 milhões é considerado ‘bem de família’ perante a norma. Será que isso significa proteção do mínimo existencial ou verdadeira fraude contra o credor?!”, questiona.
Para ele, caso o imóvel seja de alto valor econômico ou de grande tamanho, não se está garantindo o mínimo ao devedor. “Pelo contrário. É um prejuízo injustificável ao credor. Se não houver mudança na Lei (8.009/90), para expressamente contemplar essa possibilidade (de se estipular um limite ao valor do bem), cria-se uma insegurança jurídica inadmissível, pois não se saberá o limite ou a extensão da penhora do único imóvel do indivíduo que detém a dívida”, argumenta.
Simão acredita que os princípios da norma se chocam, permitindo, assim, a penhora do único imóvel do devedor, no que exceder o mínimo necessário à sobrevivência. Conforme o advogado, bem de família não pode significar prejuízo imotivado dos credores. “O correto seria a alteração da Lei 8.009/90 para se permitir a alienação do imóvel cujo valor supere a 1.000 (mil) salários mínimos, dividindo o valor da seguinte forma: o devedor receberia o correspondente a 1.000 (mil) salários mínimos, e o valor excedente seria destinado ao credor”, sugere.
Rodrigo Toscano de Brito, advogado e diretor nacional do IBDFAM, enxerga a Lei 8.009/90 como uma das mais importantes do ordenamento jurídico, pois, de acordo com ele, a norma traduz de modo claro aquilo que pretende o direito Civil-Constitucional. “O que pode haver é a discussão de um tema pontualmente controvertido, que admita, diante de determinados casos, a relativização da proteção do bem de família. Parece-nos, assim, que a melhor ideia sobre o assunto foi lançada pelo ‘professor’ [ministro] Luís Edson Fachin, quando criou um parâmetro interpretativo que denominou de ‘estatuto jurídico do patrimônio mínimo’”, opina.
O jurista afirma que, se é possível satisfazer o crédito e manter a caracterização do imóvel como sendo bem de família – em razão do seu conceito –, é possível interpretação não propriamente difusa, mas relativizada – em casos pontuais. “Isso porque a proteção maior deve ser a do bem [de família], como ocorreu no julgamento do REsp. 1.178.469/SP, quando se disse ser possível a penhora de parte do imóvel, caracterizado como bem de família, quando for possível o desmembramento sem sua descaracterização”.
Rodrigo Toscano de Brito ainda sustenta que a subjetividade do conceito de “alto valor” pode conduzir a decisões que colocam em dúvida a proteção do bem de família. “Se o imóvel de alto valor é caracterizado como bem de família e comporta desmembramento cômodo, sem que haja a descaracterização do bem de família da parte que se mantém nas mãos do devedor, penso ser possível a penhora de parte desse imóvel. Se, por outro lado, não é passível de desmembramento cômodo – como é o caso de um apartamento, ainda que de alto valor –, penso ser impossível a penhora de parte do imóvel”, explica.
Ele conclui, argumentando que, em casos como esse [em que imóveis de alto valor estão em questão], “o ônus imposto ao bem é muito grande para o devedor e, a priori, parece-me um ato de utilidade duvidosa para o credor, tendo em vista o desestímulo de eventuais arrematantes de ser proprietário de fração ideal de bem, sendo que a outra quota estará protegida pelo conceito de bem de família, inclusive para fins de manutenção de posse – em favor da família –, o que me parece um elemento incluído no que é compreendido como bem de família”.